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Dora Incontri [1]

Há muito queria escrever algo sobre o suicídio e aproveito esse setembro amarelo, em que se faz uma campanha nacional de prevenção ao suicídio, para lançar ao público algumas das reflexões que tenho feito sobre esse tema de grande relevância. Pelo excelente documento preparado pela Associação Brasileira de Psiquiatria, com o título Suicídio, informando para prevenir (http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index9/?numero=14)  são 10 mil pessoas que se matam por ano no Brasil e quase um milhão no mundo! Temos, portanto, de falar sobre isso! E fazer algo a respeito.

A cena mais bela e forte de um filme que adoro – Lutero – é quando ele toma nos braços o corpo de um rapazinho que se suicidara e cava ele mesmo a terra, para enterrá-lo. Esse ato significava um gesto de empatia e compaixão para com o rapaz e para com a família e uma forma de resistência à inapelável condenação que a Igreja sempre lançou sobre os suicidas, nunca permitindo que fossem sepultados em “terra santa”.

Aliás, o suicídio é fortemente condenado pelas religiões em geral.

O Espiritismo, rompendo no século XIX com a ideia de condenação eterna e de inferno como um local de expiação, amenizou esse julgamento inapelável. Mas nem tanto. As reverberações atávicas da Igreja ainda ressoam hoje no movimento espírita, como veremos.

Examinemos primeiro Kardec. Em pleno século XIX, quando a Igreja católica ainda falava em inferno material, Kardec proclamou que céu e inferno são estados de consciência e não estão fora da alma humana. Hoje, o Catecismo oficial da Igreja também entende assim. Para mostrar o estado de consciência de Espíritos das mais diferentes categorias, com histórias de vida e de morte distintas, Kardec realizou em Céu e Inferno, entrevistas minuciosas com eles, através de diferentes médiuns, procurando perscrutar o que sentiam, o que viam, como estavam…

As entrevistas são sóbrias. Os suicidas se mostram em sofrimento sim, e afirma-se que o suicídio é uma infração às leis divinas. Aparece, segundo a linguagem da época, hoje para nós incômoda, como em várias obras de Kardec, a palavra castigo. Entretanto, sempre entendido como uma consequência natural dos atos praticados. Entre os motivos de suicídio dos entrevistados, havia a solidão e o abandono, o alcoolismo aliado à mendicância, a perda de entes queridos, a perda da fortuna, o amor não correspondido e o tédio existencial… esses motivos ainda estão presentes entre as causas de suicídio na atualidade. E as condições de consciência apresentadas pelos entrevistados eram de desapontamento, angústia, escuridão e alguns se viam junto ao corpo – mas isso não é regra.

O suicídio é tema recorrente na maioria dos 12 volumes da Revista Espírita, demonstrando que Kardec tinha uma grande preocupação com o assunto. Em julho de 1862, escreve um artigo intitulado Estatística dos Suicídios, fazendo uma análise sobre o aumento dos suicídios na França, e procurando apontar as causas, lamentando que não existam pesquisas a respeito. Hoje, há essas pesquisas em todo mundo. Entre as que Kardec reconhece em seu tempo estavam as doenças mentais, problemas sociais, e sobretudo, o avanço do materialismo e a falta de perspectiva existencial. O artigo continua muito atual e revela bem como Kardec procurava abordar as questões, abrangendo todos os seus aspectos e procurando soluções educativas e preventivas. Para ele, a maior prevenção possível para o suicídio seria o conhecimento seguro e com contornos mais precisos da vida pós-morte, que o Espiritismo nos dá. Demonstrada a imortalidade, de maneira clara e racional, o suicídio perde sua razão de ser.

No Brasil, como sabemos – e inclusive isso hoje é objeto de teses acadêmicas, feitas por pesquisadores não-espíritas, mas já era opinião de um Herculano Pires, por exemplo – o Espiritismo desenvolveu-se num caldo cultural eminentemente católico e por isso acentuou aquilo que já nos incomoda em Kardec – com palavras como castigo por exemplo, o que pode induzir a uma ideia antropomórfica de Deus – mas deixaou de lado aquela racionalidade sóbria e crítica e aquele espírito científico de observação, que fazem a originalidade e conservam a atualidade do mestre.

No caso do suicídio, temos o clássico da nossa querida Yvonne Pereira, Memórias de um Suicida, que estou relendo no momento, anos depois das primeiras leituras. E realmente o tom do livro em alguns aspectos parece-me hoje excessivo. Há coisas interessantes, como a própria Universidade que os personagens frequentam. Mas os suicidas são chamados o tempo inteiro de criminosos, réprobos, condenados… e causa espécie também a descrição pavorosa daquele vale nas trevas profundas, para onde foram arrastados e aprisionados – como se fosse uma espécie de campo de concentração de suicidas. Eu mesma, em meus 40 anos de mediunidade, já recebi inúmeros suicidas que não estavam em vale nenhum. Um caso de suicídio relatado por exemplo, no livro Missionários da Luz, de Chico Xavier, também não descreve o espírito no vale e muito menos os entrevistados de Kardec.

Outras narrativas por outros médiuns brasileiros seguem trilhas parecidas ao livro de Yvonne. Tudo muito pesado, determinista, condenatório. Não há as nuanças do pensamento de Kardec, que a toda hora avisa que cada caso é um caso, que há muitas atenuantes, que há causas psíquicas, sociais, filosóficas dos suicídios e que precisamos preveni-los.

Isso significa que esses vales não existem? Que são ilusões dos médiuns? Existem sim aglomerações no Plano Espiritual (embora Kardec não tenha tratado disso, há inúmeras narrativas a respeito e eu mesma já visitei algumas). Mas não são lugares necessários a que as pessoas irão. São espíritos reunidos na mesma afinidade de pensamentos, que projetam o ambiente consciente ou inconscientemente e vivem na mesma faixa vibratória e de lá podem sair na hora em que mudarem o vetor vibratório.

Há muitos espíritas que pensam que, ao desencarnarem, passarão um período no Umbral, como os católicos achavam que iriam passar necessariamente pelo purgatório. Isso é materializar e generalizar demais as circunstâncias espirituais de cada consciência. Kardec foi bem mais sutil.

A posição de Kardec em relação ao suicídio, mais analítica, mais preocupada com as causas e com prevenção do que em aterrorizar os vivos com os horrores do vale dos suicidas, é muito mais próxima da perspectiva contemporânea.

Hoje se sabe que a depressão (e outras doenças mentais) é a causa de muitos suicídios – ora, a depressão é uma doença psíquica que requer cuidados, amparo, terapias e, às vezes (penso que menos do que se dá) remédios. Aliás, os medicamentos devem justamente entrar, a meu ver, sobretudo quando a pessoa está correndo o risco de se matar. O próprio Kardec avisava no século XIX, quando a Psiquiatria estava apenas nascendo, que se o indivíduo estivesse doente mentalmente, isso lhe isentaria ou ao menos atenuaria muito sua responsabilidade no suicídio. Ora, hoje, considera-se que o suicídio quase nunca é praticado por pessoas que estão saudáveis psiquicamente. Isso já descriminaliza grande parte dos suicidas, nos critérios de Kardec.

Hoje se estudam os fatores de risco do suicídio e além das doenças mentais, há os abusos sofridos na infância, a falta de sentido existencial, tipo de personalidade impulsiva etc. Em todos os casos, identificados os riscos, acompanhando-se de perto a pessoa que os apresente, com atenção, cuidados psíquicos e médicos, o suicídio pode ser evitado. Logo, algo que pode ser prevenido não é apenas um problema individual, mas uma questão social, coletiva. Somos todos responsáveis.

Lembro-me de um livro fantástico, escrito por Pestalozzi, no virar do século XVIII para o século XIX. Chama-se Legislação e Infanticídio e é considerado o primeiro livro de sociologia escrito antes mesmo do advento dessa ciência. Nessa obra, Pestalozzi examina uma grave questão criminal que estava ocorrendo na Suíça do seu tempo. Mulheres eram condenadas à prisão por terem assassinado seus filhos recém-nascidos. Qualquer pessoa diria na época e ainda hoje: mulheres monstruosas, criminosas, que mereciam toda punição. Pois Pestalozzi não se contentou com essa resposta simplória, já que matar o seu próprio rebento não é algo tão natural assim… (assim como o suicídio, que contraria o instinto de sobrevivência, também não é!) Foi se debruçar sobre os processos de julgamento dessas mulheres, para saber da história delas e constatou que a sociedade era culpada, sobretudo os homens. Eram todas mulheres que vinham do campo para a cidade e ao chegarem eram seduzidas por homens (sim, isso existia 200 anos atrás!), que depois as abandonavam. Grávidas solteiras, não havia escolha para elas. Ao contrário das sociedades católicas, que sempre deram um jeito de remediar o pecado, com Casas de Misericórdia, Conventos, ou mesmo prostituição, o universo protestante, calvinista, não tinha válvulas de escape. As mulheres ou se matavam ou matavam seus filhos. Ninguém iria se casar com uma mãe solteira, mulheres não podiam ter profissão e independência e no caso da velha Suíça calvinista, nem putas ou freiras elas poderiam ser… Pestalozzi então responsabiliza a moral rígida, a sociedade intransigente e os homens que abusavam e se desresponsabilizavam…

Esse é um exemplo para mostrar o quanto aquilo que consideramos crimes monstruosos sempre têm que ser analisados dentro de seus contextos, com olhos abrangentes e de preferência seguindo-se aquelas recomendações de Jesus: “não julgueis para não serdes julgados” e “quem estiver sem pecado, atire a primeira pedra”.

Nossa visão contemporânea de compreender o suicídio como uma questão de saúde pública é muito mais cristã do que esses arroubos condenatórios, implacáveis, inapeláveis. O suicida é um espírito em sofrimento, sim. Mas ele já estava em sofrimento na terra. E não foi suficientemente visto, socorrido, amparado. Quando ele pratica esse ato, ele está se ferindo a si mesmo. Agora, que espécie de Pai seria Deus se ainda punisse esse ato, se nós, pais terrenos, imperfeitos, ao vermos uma criança se machucar a si mesma, seja por descuido, teimosia ou inexperiência, corremos a socorrer a criança, trazendo remédio, enxugando as lágrimas, cercando de consolo? Não consideraríamos abaixo de qualquer crítica um pai ou uma mãe que ainda espancassem a criança machucada ou a deixassem chorar sem socorro, ou se sentissem pessoalmente ofendidos com a queda do pequeno?

Ora, há gente que advoga que o suicídio é uma ofensa a Deus!! E Deus lá pode se ofender? O suicídio é o ato de um espírito imaturo, inconsciente, desesperado ou mesmo teimoso, de se ferir a si próprio. Ele terá de curar a ferida que fez em si. Mas a misericórdia de Deus é infinita.

Nesse caso, gosto bastante da ideia presente no livro Memórias de um Suicida, em que se conta que Maria de Nazaré é um Espírito que dirige uma falange de almas que socorre os suicidas. Porque é bem isso: o suicida é uma criança machucada, que precisa de um colo materno.

Faz parte da nossa evolução psíquica, social, espiritual, deixarmos de lado essas visões tão trágicas de culpa e castigo e avançarmos para uma visão de que tudo no universo é educativo. Sofrimento há, mas é transitório. E cabe-nos trabalhar para minimizá-lo e até extingui-lo, como propunha Buda. Para isso, cabe-nos sempre perdoar a nós mesmos, perdoar o outro e saber que Deus nem precisa nos perdoar, porque sabe que estamos aprendendo.

Numa das mais impressionantes manifestações de um Espírito suicida, que já tive, observei que ele estava num lugar bonito, amparado por almas amigas, mas sofria intensamente: não conseguia se perdoar por ter feito o que fez, ter ferido a si mesmo e a família. Então, assim podemos ler um relato como o de Camilo Castelo Branco no livro de Yvonne: ele próprio se qualificava de criminoso, réprobo etc. Isso é da consciência acostumada a agir com o próximo e consigo mesma de maneira dura e implacável. Precisamos superar isso e caminhar no sentido da misericórdia, do perdão e sobretudo do amor, que cobre a multidão de pecados, como dizia Jesus.

E o que podemos fazer concretamente para evitar o suicídio à nossa volta?

Não poderia deixar de mencionar a educação, como a mais eficaz prevenção em relação ao suicídio. Mas que educação? Não é certamente essa que é dada nas escolas, que nem a função de instruir faz bem feita.

Mas sim uma educação que procure cercar o indivíduo de fortes e sólidos afetos, de modo que ele nunca se sinta sozinho.

Uma educação que trabalhe sentido existencial, resiliência diante da dor, projeto de vida…

E sobretudo, uma educação que cuide desde cedo da espiritualidade e que abra uma perspectiva de eternidade e transcendência.

 

Fonte: https://doraincontri.com

[1] Dora Incontri é jornalista, doutora em Educação pela USP, autora, coordenadora da Universidade Livre Pampédia.

Os artigos publicados neste site são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da Associação Espírita Obreiros do Bem.

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