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Mediunidade e Autoconhecimento – menos ego e mais serviço

Dora Incontri [1]

Um dos primeiros posts que lançamos nesse blog da ABPE, escrito por Cláudia Mota, foi sobre nossa experiência no grupo de Mediunidade Pedagógica, em ação há vários anos. A reação favorável e os comentários do público demonstram o quanto estamos carentes de boas, consistentes e aprofundadas discussões sobre a prática mediúnica no movimento espírita. E mais, como rareiam reuniões e médiuns com trabalhos mais criteriosos, controlados e atitudes críticas e racionais em relação a essa prática.

Na atual configuração do movimento no Brasil, temos duas situações recorrentes: um espiritismo quase sem espíritos, com centros, grupos e pessoas inseguros para realizar um bom trabalho de desobsessão ou de psicografia, por exemplo; e um espiritismo que gira em torno de médiuns-gurus, que estão acima de qualquer análise crítica, que são incensados por fãs e que se tornam líderes incontestáveis em seu meio, em setores do movimento ou mesmo no movimento quase inteiro!

Três coisas muito importantes que Kardec propôs e praticou e andam esquecidas: 1) a mediunidade é algo natural, que pode ser praticada em grupos pequenos, com estudo, seriedade e princípios éticos; 2) os médiuns, por melhores que sejam, estão sujeitos a falhas e por isso devem submeter constantemente o que captam do além à crítica alheia e ao cruzamento com percepções de outros médiuns; 3) os médiuns não devem procurar (e nem mesmo aceitar) projeção, liderança e popularidade por serem médiuns (Kardec nem nomeava os médiuns em seus livros). Que busquem projeção (se assim desejarem) ou ganhem liderança, por suas próprias capacidades e não por serem intermediários dos Espíritos.

Traduzindo esses três itens em outras palavras: mediunidade é algo para ser desenvolvido tranquilamente, sem muitas complicações, algo a ser democratizado e não sacralizado; os médiuns precisam trabalhar seus impulsos narcísicos e praticarem mediunidade com modéstia.

Isso não significa que não se devam publicar coisas mediúnicas, fazer sessões públicas ou divulgar obras feitas pelos Espíritos. Mas significa que tudo isso deve passar pela análise crítica, tudo deve ser feito com desinteresse de projeção pessoal.

Ora, aí que entra uma questão muito importante: para se exercer uma mediunidade honesta e consciente, sem muita mistura de vaidade pessoal, é preciso que o indivíduo tenha o compromisso do autoconhecimento. Esse mesmo que Sócrates já aconselhava tantos séculos atrás, que se repete como uma recomendação no Livro dos Espíritos e hoje é muito facilitado pela possibilidade de fazermos terapias, nas mais diversas abordagens existentes.

Conhecendo-nos melhor (o que aliás é tarefa que não acaba numa existência), podemos em primeiro lugar saber das nossas motivações internas mais profundas, vencer a imaturidade psíquica de querermos ser adorados e mimados a qualquer preço, entender melhor como funciona nosso psiquismo, precavendo-nos contras as armadilhas do egocentrismo, do desejo de poder e outras tantas coisinhas que nos atrapalham existencialmente. Dentro de uma abordagem psicológica, passamos a enxergar tais atitudes não mais como vícios, contra os quais temos de promover uma reforma íntima, com culpa e autoflagelação (o que resulta na maior parte das vezes em mera hipocrisia), mas começamos a compreender tudo isso como demonstração de imaturidade espiritual. Deixar de lado exibicionismos, personalismos, melindres e vaidades é simplesmente ter atingido um grau de maturidade, em que não se acha mais graça nessas pequenezas. A pessoa mais madura acha sim graça em fazer o bem sem ostentação, em buscar contribuições que a façam crescer e não as ilusões do incenso, que a façam estacionar…

É claro que tudo isso é o ideal a ser perseguido. Sabemos que estamos todos em aprendizagem, em processo de maturação espiritual. Todos nós vamos misturar imperfeições nossas em qualquer ação, por isso que Kardec dizia que o melhor médium é o que menos erra. Mas não custa tentar um pouco de bom senso e seguir algumas recomendações desse mestre. E seguir também o seu próprio exemplo.

No século XIX, palco de grandes gênios de egos inchados –  como Compte, Marx, Freud – Kardec é notável por ter se escondido atrás da própria obra. Ele não encenava humildade, falando de si mesmo de forma depreciativa; ele simplesmente não falava de si. Buscava elaborar um conhecimento racional, equilibrado e reto. E foi tão modesto que seus adeptos chegaram a achar até hoje que ele foi mero codificador (título aliás que não aparece em nenhuma obra sua), um simples um secretário de ideias reveladas pelos Espíritos. Mas na verdade, Kardec foi o fundador do Espiritismo, que é justamente um método de abordagem dos fenômenos mediúnicos. Como se dá esse processo entre os dois mundos e como podemos analisar e aproveitar para nossa edificação moral, o que vem de conteúdo nesse diálogo entre encarnados e desencarnados? Aí reside a essência do Espiritismo. E exatamente esse seu método de naturalização da mediunidade, com uma abordagem crítica e racional, que não entendemos e não praticamos no movimento espírita.

É preciso, pois, para que possamos restabelecer comunicações seguras, confiáveis e democratizadas com o mundo espiritual, que diminuamos nosso ego, recuperemos o espírito crítico, estudemos Kardec e busquemos a ética de servir desinteressadamente.

[1] Dora Incontri é jornalista, doutora em Educação pela USP, autora, coordenadora da Universidade Livre Pampédia.

Fonte: https://blogabpe.org

Os artigos publicados neste site são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da Associação Espírita Obreiros do Bem.

Pintura de Leonid Pasternak (1862-1945)
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