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Caridade em plenitude

Sandra Borba Pereira

A caridade satura de amor as relações com os semelhantes [1], afirma o filósofo francês e historiador da Ciência, Michel Serres (1930-…..).

É uma das mais profundas afirmativas que já lemos a respeito do tema caridade.  Serres é um autor cujos antepassados foram cátaros, é um leitor diferenciado das Sagradas Escrituras, especialmente das Cartas de Paulo, por quem nutre muita admiração.

Detendo-nos sobre a afirmativa que abre esse texto, nos deparamos com o verbo saturar, que significa impregnar, encher até o limite. Saturar as relações implica impregnar essa relação, encher essa relação de algo, no caso em questão, do sentimento por excelência: o amor. Com essa saturação, as relações se dão em clima de respeito, base para uma vida social que possibilite bem-estar para todos e onde os conflitos possam ser superados pelo diálogo, indulgência e compreensão recíproca.

Ainda observando a afirmativa do pensador francês vemos que essas relações impregnadas de amor devem ocorrer entre os semelhantes. Importa, porém, esclarecer que para ele essa semelhança não delimita ou exclui seres, não propõe uma espécie de reciprocidade entre iguais, o que caracterizaria um exclusivismo criticado pelo próprio Jesus quando alertou: Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? [2]

M. Serres elucida que a caridade é um fenômeno totalizante, pois supera qualquer contingência existente nas relações humanas. Busquemos exemplificar essa afirmativa evocando relatos nos Evangelhos. Ao constituir seu Colégio Apostólico, Jesus reúne vários companheiros, de idades e atividades diferentes. Integra mulheres nas Suas ações. Conclama judeus e gentios a Lhe seguirem os passos. Convive com ricos e pobres. Ao ser indagado sobre a vida eterna e sobre quem seria o próximo, Jesus narra a parábola do Bom Samaritano [3] e coloca um homem da Samaria tão rejeitada, como símbolo maior da prática da caridade saturada, plena. O samaritano não indaga sobre a procedência do homem caído no caminho de Jerusalém para Jericó e o cerca de cuidados plenos para garantir sua integridade. Apenas se deixa conquistar pelo sentimento de compaixão pelo ser humano que ali estava, ferido, indefeso. Ou seja, a caridade ensinada e exemplificada pelo Mestre é totalizante, inclusiva, acolhedora, sem fronteiras ou limitações, para além das semelhanças.

Em suas reflexões, Serres ainda considera que a caridade possibilita uma integração com o universal, para além da noção de pertencimento. O autor considera que o pertencimento, quando entendido e vivido de modo reduzido, pode provocar cisões, separações, indiferença, embates, ódios. A prova disso encontramos nas múltiplas expressões dos sectarismos, preconceitos, intolerâncias e violências de ordem diversa, manifestadas pela não aceitação do outro, pelo egoísmo e orgulho exacerbados.  A essência da caridade, pelo contrário, nos conclama a superar rótulos, ideologias, nacionalidades ou qualquer contingência que separe o ser humano do outro ser humano.

Assevera também o pensador francês, inspirado no pensamento de Paulo de Tarso, que a caridade integra a fé e a esperança. Essas três virtudes, aprendidas e vivenciadas, constituem o ser humano novo, um sujeito que emerge pleno em sua humanidade, superando tudo aquilo que reduz, divide, separa, segrega. O esforço para viver a caridade é exercício de plenitude, de superação de nossas limitações e incompreensões, na direção do sentimento de amorosidade pelo outro, pela Vida e por nós mesmos, sem fronteiras limitadoras originadas de nossas incompreensões imperfeitas.

Ao ler essas considerações lembramos que em sua Carta aos Coríntios, Paulo identificou características essenciais da caridade afirmando [4]: O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

Ao finalizar nossa reflexão sobre a sublimidade da caridade, como a mais meritória de todas as virtudes, conforme asseveram os Espíritos [5], recordamos a afirmativa de Allan Kardec [6]: A caridade é a alma do Espiritismo; ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes, razão por que se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade.

Vivenciar a caridade é, desse modo, exercitar a humanidade plena, aquela que nos conduzirá à espiritualização desejada e só conseguida com a saturação do amor em nossa vida de relação com o próximo.

 

Referências:

 

[1] SERRES, Michel. Ramos. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

[2] BÍBLIA, N. T. Mateus. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Campinas: Os Gideões Internacionais no Brasil, 1988. cap. 5, vers. 46.

[3]  Op. cit. Lucas. cap. 10, vers. 25-37.

 

[4] Op. cit. 1Cor. cap. 13, vers. 4-7.

 

[5] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 83. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002. pt. 3, cap. 12, q. 893.

 

[6] REVISTA ESPÍRITA: JORNAL DE ESTUDOS PSICOLÓGICOS. Ano XI, 1868. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. p. 492.

 

Fonte: Jornal Mundo Espírita (Março 2019)

 

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