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Caridade e Amor

Silvio Seno Chibeni

1. Introdução

Embora dicionários evidentemente não constituam fonte de informações detalhadas sobre assuntos de certa complexidade, podem por vezes ser úteis na indicação preliminar do significado de alguns termos pertinentes ao assunto. É assim que, no que diz respeito ao tema do presente artigo, podemos consultar com proveito, por exemplo, o conhecido dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, lendo, no verbete caridade:

Caridade. [...] S.f. 1. (Ética) No vocabulário cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem [...]. 2. Benevolência, complacência, compaixão. 3. Beneficência, benefício, esmola. [...]

Comentaremos alguns aspectos dessas definições ao longo deste trabalho. Por enquanto, atenhamo-nos ao fato de que o primeiro sentido do termo, pertencente ao domínio da ética, é associado pelo dicionarista ao cristianismo. Caridade, na primeira e mais fundamental acepção do termo, é, pois, um conceito criado, ou pelo menos destacado, por Jesus e seus discípulos.

Sendo assim, o passo seguinte mais natural na pesquisa do tema consiste em examinar a ocorrência da palavra na Bíblia ou, mais especificamente, no Novo Testamento. Quando ainda não existiam textos digitalizados, tínhamos o costume de consultar uma obra preparada por estudiosos protestantes chamada Chave Bíblica, um útil índice de assuntos da Bíblia. Há no mercado várias edições, de diferentes níveis de detalhe. A que possuímos é uma edição da Sociedade Bíblica do Brasil. Diz-se na página de rosto que possui quase sete mil verbetes, e que se baseia na conhecida tradução de João Ferreira de Almeida.

Qual não foi nossa surpresa ao procurarmos o verbete ‘caridade’ nessa obra e não o encontrarmos! Recorremos, então, a uma versão eletrônica da Bíblia que está disponível num site espírita brasileiro, na Internet. Não tínhamos, é claro, esperança de encontrar referências à caridade no Velho Testamento. No Novo, porém, haveríamos de encontrar ao menos algumas ... Mas ali também nada achamos!

Todos sabem, no entanto, que algumas versões do Novo Testamento trazem a palavra ‘caridade’. Veio-nos à mente, por exemplo, a passagem da primeira epístola de Paulo aos coríntios, cap. 13, na qual a caridade é definida em termos belíssimos. (Essa passagem foi, aliás, transcrita e comentada por Allan Kardec no cap. 15 de O Evangelho Segundo o Espiritismo; voltaremos a ela mais adiante). Consultamos então seis edições do Novo Testamento. Eis o resultado: dentre as três cujas traduções são atribuídas a João Ferreira de Almeida apenas em uma ocorre o termo ‘caridade’; nas demais, está substituído por ‘amor’. O mistério aumentou quando verificamos que duas das edições discrepantes são editadas pelo mesmo editor, Os Gideões Internacionais! Na edição de 1977 está ‘caridade’; na edição de 1979, ‘amor’. Numa edição católica está ‘caridade’. O mesmo ocorre numa antiga edição publicada em Nova Iorque, em Português, pela Sociedade Bíblica Americana, e numa edição francesa recente da Bíblia de Jerusalém.
 

Ora, tudo isso pode parecer estranho. Certamente indica algo pelo menos indesejável. Textos tão importantes para a Humanidade não poderiam ser objeto de tal discrepância. Note-se que ela não se deve tão-somente a dificuldades de tradução, dadas as diferenças entre textos atribuídos ao mesmo tradutor, e até do mesmo editor.

Sem querer aprofundar um assunto complexo, a discrepância em análise deriva ao menos parcialmente de uma grave divergência teológica entre protestantes e católicos. Trata-se da questão da chamada “salvação”. Simplificando, os últimos tendem a considerar que a salvação se alcança pelas obras, enquanto que para os primeiros ela seria alcançada pela. Essa divergência remonta aos primeiros tempos do protestantismo. Ambas as partes defendem que suas posições se apóiam em passagens evangélicas.

A inspeção isenta das passagens, porém, evidencia problemas de interpretação. Isso está claro, por exemplo, nas passagens das epístolas de Paulo em que se pretende respaldar a tese da salvação pela fé. São textos bastante difíceis, obscuros mesmo. (Veja-se, por exemplo, Rom. 3: 21-31, 5:1, Ef. 2: 8 e I Tess. 5: 9.) É, sobretudo, o seu isolamento do contexto das epístolas que favorece a interpretação protestante. Ademais, não terá porventura o Apóstolo dos Gentios exemplificado amplamente a caridade em suas ações? Ele era, aliás, a antítese da fé contemplativa. Saía pelos caminhos ásperos de seu tempo enfrentando dificuldades de toda ordem para disseminar e consolidar a mensagem cristã, auxiliando a todos por todos os meios ao seu alcance. Que expressão maior da caridade do que esclarecer e educar para o bem? E no que toca ao auxílio material, não foi Paulo quem organizou a primeira campanha internacional de solidariedade, arrecadando recursos para a Casa do Caminho de Jerusalém, conforme lemos em Paulo e Estêvão, de Emmanuel?

Não dispomos nem de material nem de competência para investigar a delicada questão das traduções da Bíblia. Todavia, não podemos deixar de notar que são justamente as edições a cargo de entidades de linha protestante as que não costumam apresentar a palavra ‘caridade’. Para dirimir ou ao menos minorar as dúvidas, parece sensato empreendermos não somente estudos linguísticos, mas também uma análise neutra da natureza geral da mensagem cristã. Um dos traços mais importantes, senão o mais importante, que distingue o cristianismo é justamente a ênfase dada por seu criador à dimensão ativa do amor, à caridade. Ele não se fechou em si, não se retirou para nenhum mosteiro ou região especial, não fundou nem favoreceu nenhum culto, nenhuma seita. Viveu em meio aos homens – instruídos e ignorantes, orgulhosos e humildes, pobres e ricos, pecadores e virtuosos –, ajudando-os incessantemente com seus ensinos e reflexões, com seus recursos curativos e mesmo com suas admoestações.

Voltando a Paulo, e assumindo que as traduções que distinguem amor de caridade são as que mais se aproximam do sentido original, podemos, em contraposição às passagens indicadas e que serviram à interpretação favorável à tese da salvação pela fé, citar outras tantas que ressaltam as obras, como por exemplo o já citado capítulo 13 da primeira carta aos coríntios; o versículo 14 do capítulo 16 dessa mesma carta; a primeira epístola aos tessalonicenses, capítulo 4, versículo 9; e diversas outras. (Voltaremos a comentar a última passagem mais adiante.)

Pedro, em sua primeira epístola (4: 8), vai mais longe, recomendando não apenas a caridade, mas, numa eloquente expressão, a caridade ardente: “Mas, sobretudo, tende ardente caridade uns para com os outros; porque a caridade cobre a multidão de pecados”. Notemos, incidentalmente, que nessa passagem o apóstolo acrescenta que a caridade nos redime de nossos pecados, e portanto nos salva – salva de nossa própria inferioridade ou indigência espiritual, não de nenhum perigo externo. É ela que nos possibilita reparar os danos que porventura causemos aos outros e, de um modo mais geral, à harmonia do mundo. É ela que nos propicia recursos preciosos para a nossa evolução espiritual.


 

2. Um pouco de filosofia

Existe uma distinção filosófica entre dois conceitos que pode ser útil na análise da questão do amor e da caridade. Trata-se da distinção entre paixão e ação. Qualquer estudo do tema deve, ainda hoje, fazer menção ao livro As Paixões da Alma, de René Descartes, publicado em 1649. Para os espíritas, outra referência indispensável é a seção “Paixões” do último capítulo da terceira parte de O Livro dos Espíritos, intitulado “Da perfeição moral”. Em trabalho anterior, publicado no Reformador de abril de 1998, fizemos um exame do interessante assunto. Não podendo, evidentemente, reproduzir aqui os detalhes desse texto, recomendamos ao leitor que o procure ler, para uma compreensão mais completa do que se vai seguir. (O artigo encontra-se disponível no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp: http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482. A partir de 2009 em www.geeu.net.br )

De forma muito simplificada, lembraríamos apenas que o conceito filosófico de paixão não deve ser confundido com a noção hoje popular, associada a certos sentimentos desgovernados, em geral envolvendo nosso relacionamento afetivo com alguém ou com alguma coisa. Tanto Descartes como Kardec deixam claro que paixão é qualquer tipo de experiência que se faz sentir em nossa alma de forma passiva. (As palavras ‘paixão’ e ‘passividade’ têm a mesma origem.) Paixões, pois, se contrapõem a ações. Ações pressupõem a intervenção da vontade; paixões são algo que ocorre em nós involuntariamente, quando estamos diante de certos estímulos, externos ou internos à própria alma. Assim, por exemplo, as paixões que Descartes considera “básicas” são o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a admiração e o desejo; as outras resultariam de sua combinação ou modificação.

Descartes procurou explicar a ocorrência das paixões em termos de certos processos psico-fisiológicos complexos, que não vem ao caso discutir aqui. É suficiente notar que hoje em dia talvez possamos descrever esses processos como uma espécie de automatismo. Vemos uma cena cruel e automaticamente sentimos indignação. Ouvimos alguém gemer e sentimos pena. Lemos uma notícia boa e ficamos alegres. Pensamos na traição de um amigo e nos entristecemos. Refletindo sobre esses exemplos, percebemos que de fato os sentimentos descritos se apoderam de nós sem que o desejemos e, além disso, sem que possamos imediatamente alterá-los por nossa vontade. Descartes apontou e explicou essa impossibilidade do controle direto das paixões.

Quando, por meio de uma análise racional, estimamos que uma determinada paixão é prejudicial a nós ou a outros, coloca-se a questão de como então podemos domá-la. Uma medida que seguramente está ao nosso alcance é impedir que a paixão repercuta em nossas ações. Quando sentimos raiva, por exemplo, podemos sempre nos abster de agir vingativamente. Mas o sentimento em si permanece. O famoso filósofo francês indicou o que pode ser feito mesmo nesse nível íntimo. Em síntese, propôs que por uma série de artifícios podemos indiretamente controlar a paixão que incomoda. Remetemos, mais uma vez, o leitor ao referido artigo para o prosseguimento desse vasto assunto. O que já vimos basta para podermos entender um pouco melhor a distinção entre amor e caridade.

Pois bem: parece-nos claro que, não obstante intimamente associados, os conceitos de amor e de caridade distinguem-se justamente por serem, respectivamente, paixão e ação. O amor é o sentimento; brota em nós espontaneamente. A caridade é a mobilização de nossa vontade por esse sentimento, para que algo façamos em benefício de alguém ou de alguma coisa. Essa interpretação está inteiramente de acordo com a definição do dicionarista citada no início deste texto. “Caridade: ... o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem ...”.

O amor muitas vezes é entendido como algo que pode esgotar-se em si mesmo e não desencadear ações caritativas. Seria o amor “contemplativo”, “meditativo”, tão frequentemente associado a certas abordagens religiosas, especialmente as de origem oriental. Jesus propôs-nos algo diferente: o amor-em-ação, a caridade. Embora a superação do ódio e das mágoas seja algo fundamental em nossa evolução, se nos restringirmos ao simples querer-bem nosso sentimento estará incompleto. É justamente a sua associação à prática do bem que o completa e consolida. Nesse sentido é que a caridade talvez seja o traço diferenciador mais importante da doutrina cristã, conforme sugerimos na seção precedente.

Outro ponto importante que a análise filosófica esboçada acima esclarece é que, como o amor é uma paixão (no sentido filosófico do termo), não temos controle direto sobre o seu surgimento. É inútil, por exemplo, diante de um agressor simplesmente querer amá-lo. A experiência própria confirma isso, aliás. Talvez seja essa uma das razões pelas quais a Humanidade tem demorado tanto para seguir as recomendações seculares de seus líderes espirituais, unânimes em pedir-nos que nos amemos uns aos outros.

Com a noção de caridade, Jesus trouxe um elemento novo para resolvermos o problema da conquista do amor. Sendo uma ação, a caridade está sempre ao nosso alcance direto. Depende só de querermos. Se aprofundarmos esse tópico, talvez consigamos situar a caridade dentro da noção cartesiana de um processo indireto de controle de paixões. Na ausência do amor, ou na presença de um amor incipiente, ainda assim podemos ser caridosos, se reconhecermos racionalmente que é isso que nos convém. A caridade acaba, depois, desencadeando ou reavivando o amor. O nosso automatismo se redireciona. Passamos a sentir amor, à medida que fazemos o bem.

Recorrendo a uma comparação um tanto tosca, seria como alguém que tem as mãos frias, que o mecanismo fisiológico não consegue reaquecer, e que, percebendo a inconveniência da situação, lança mão de um “artifício”: aproxima as mãos do fogo. Embora o calor assim gerado seja algo externo, ele age sobre os vasos sangüíneos, dilatando-os. A circulação se normaliza, e a partir daí as mãos seguem aquecidas pela atividade do próprio corpo. A caridade inflama o amor. Uma vez inflamado, o amor realimenta a própria caridade.

Ademais, a caridade é “contagiante”. Que poder de educação e despertamento têm os exemplos de amor ativo em favor do próximo! Reparemos como nas campanhas públicas para socorrer vítimas de calamidades, por exemplo, mesmo pessoas normalmente acomodadas em seu próprio “canto” mobilizam-se, entram na luta, animam-se.

Nós aqui da Terra, que ainda temos o amor integral e universal um tanto distante, precisamos não apenas dos incentivos daqueles que estão à nossa frente na escala do amor, mas também de esforços conscientes para fazer o bem. É um indispensável período de transição para a caridade pura e desinteressada. Na referida seção sobre as paixões, em O Livro dos Espíritos, enfatiza-se a importância dos esforços para que as más paixões sejam controladas. Na seção “As virtudes e os vícios”, que abre o mesmo capítulo, explica-se que as virtudes são algo que conquistamos a partir de nossa conscientização. E Emmanuel salienta, numa interessante resposta dada à questão 254 de O Consolador, que “a disciplina antecede a espontaneidade”.

Antes de passarmos à próxima seção, queríamos, conforme prometemos, retomar um versículo da primeira epístola de Paulo aos tessalonicenses, o versículo 9 do capítulo 4. Ele apresenta a peculiaridade de estar traduzido praticamente igual em todas as edições citadas do Novo Testamento, exceto duas, a mais antiga dos Gideões e a edição católica. Significativamente, é desse mesmo modo diferente que está no mote escolhido por Emmanuel para o capítulo 138 do livro Fonte Viva. Eis o versículo:

Quanto, porém, à caridade fraternal, não necessitais que vos escreva, visto que vós mesmos estais instruídos por Deus que vos ameis uns aos outros.
 

Nas demais edições a palavra ‘caridade’ é substituída por ‘amor’. Sem ter como resolver a divergência em bases puramente textuais, vejamos o que o contexto nos indica aqui, com o auxílio da análise filosófica que esboçamos.

Paulo usava suas cartas para educar, aconselhar e alertar os irmãos das comunidades cristãs nascentes. O mandamento maior do amor já era conhecido, aliás antes mesmo do ensino de Jesus. Ele é a essência da lei divina, independentemente da época ou da religião. É nesse sentido que Paulo diz que os cristãos da Tessalonica já estavam “instruídos por Deus” acerca da necessidade de se amarem. Traduzindo-se a quarta palavra como amor, o versículo faz sentido, é claro. Já estando instruídos para se amarem, Paulo não precisava recomendar-lhes de novo para que se amassem.

Mas será que Paulo iria gastar papiro para escrever algo tão trivial? Já se colocarmos caridade o versículo passa a encerrar uma mensagem interessante e tipicamente cristã. Recomendar a caridade para quem sabe que deve amar seria em princípio dispensável porque a caridade decorre do amor, é uma de suas consequências. Paulo estaria, então, explicitando essa relação de dependência. Seria um lembrete para que a dimensão ativa do amor não fosse esquecida. O amor acerca do qual Deus nos instruiu, por seus muitos emissários, não pode ser o amor inativo. Devidamente compreendido e vivido, esse amor deve manifestar-se na ajuda fraterna – a caridade.

Podemos, talvez, esquematizar as inter-relações entre amor e caridade por meio do seguinte diagrama:

 

 

 

 

 

Quando integral, o amor implica a caridade (seta superior). Por sua vez, a caridade desperta e reaviva o amor (seta inferior). Dada sua dimensão voluntária, a caridade é a “porta de entrada” desse “círculo virtuoso” (seta larga).

3.    A caridade em O Livro dos Espíritos.

Chama a atenção que no Livro dos Espíritos a expressão ‘amor e caridade’ ocorra diversas vezes. Kardec tinha estilo enxuto, só usava as palavras na exata medida de sua necessidade (um exemplo a ser imitado, aliás!). Depreende-se, pois, que caridade e amor eram por ele considerados conceitos distintos, embora interligados. Isso está de acordo com o que vimos na seção precedente.

A primeira ocorrência dessa conjunção se dá logo nos Prolegômenos, no primeiro parágrafo da transcrição da mensagem dos Espíritos acerca da natureza e objetivos da obra e, de modo mais geral, do Espiritismo. Nesse parágrafo, compara-se o Espiritismo a um edifício, cujas bases estavam sendo lançadas com o Livro dos Espíritos, edifício destinado a um dia “reunir todos os homens num mesmo sentimento de amor e caridade”. Recebe, pois, lugar de destaque entre os objetivos do Espiritismo a implantação do amor e da caridade universais entre os homens.

Depois, a expressão ‘amor e caridade’ volta a ser usada diversas vezes no capítulo 11 da terceira parte, a começar de seu título: “Da lei de justiça, de amor e de caridade”. Essa lei, diz a resposta à questão 648, “é a mais importante, por ser a que faculta ao homem adiantar-se mais na vida espiritual, visto que resume todas as outras”. Nesse capítulo há ainda uma seção denominada “Caridade e amor do próximo”, que contém diversos esclarecimentos sobre a noção de caridade, alguns dos quais serão mencionados mais adiante.

Por fim, na eloquente enumeração das qualidades do homem de bem que se segue à resposta à questão 918 Kardec afirma, logo no início:

O verdadeiro homem de bem é o que pratica a lei de justiça, amor e caridade, na sua maior pureza. Se interrogar a própria consciência sobre os atos que praticou, perguntará se não transgrediu essa lei, se não fez o mal, se fez todo o bem que podia, se ninguém tem motivos para dele se queixar, enfim se fez aos outros o que desejara que lhe fizessem.

Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o bem pelo bem, sem contar com qualquer retribuição, e sacrifica seus interesses à justiça.

Deixamos, porém, ao leitor o prosseguimento da leitura desses lúcidos comentários em seu próprio exemplar do Livro dos Espíritos. Examinemos agora duas passagens em que a importância da caridade é destacada por Allan Kardec. Comecemos pelo item 8 da Conclusão. Nesse rico item Kardec compara a moral cristã à espírita, salientando a sua identidade de conteúdo e as peculiaridades de sua fundamentação. Mas esse é um outro assunto. O que nos interessa é tão-somente a frase do segundo parágrafo em que afirma que “o preceito capital” da moral do Cristo é “o da caridade universal”. Notemos o qualificativo: universal, ou seja, fazer o bem a todos, indistintamente.

No capítulo “Da perfeição moral”, a primeira questão (893) é sobre qual seria a mais meritória das virtudes. Depois de ressaltar o valor das demais, o Espírito acrescenta sem rebuços, no final da resposta: “A mais meritória é a que assenta na mais desinteressada caridade”. Segue-se então a referida série de questões que elucidam o processo de gradual aquisição dessa caridade desinteressada.

Vejamos agora, de forma breve, algo acerca do conteúdo da seção “Caridade e amor do próximo”. Ela abre com a famosa questão 886:

886.    Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?

“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”

Essa questão e as que a seguem são bastante relevantes, visto ser comum que a palavra ‘caridade’ seja empregada para designar uma noção muito mais restrita do que aquela pretendida por Jesus. Caridade é confundida com a mera ajuda material ou mesmo com a esmola (como aliás, registra o dicionário Aurélio no terceiro dos significados do termo). Mesmo antes de formular algumas questões específicas sobre a esmola, Kardec já ressalta, no segundo parágrafo do comentário ao item 886:

A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, abrange todas as relações em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores.

Notemos bem: a caridade abrange todas as nossas relações com os semelhantes, sejam quem sejam e estejam na posição que estejam. É por isso que a benevolência (desejar o bem), a indulgência (compreender as falhas alheias) e o perdão são apontados como parte essencial da caridade. Neste mundo de misérias que criamos na Terra, o auxílio material é importante; é indispensável, urgente mesmo. Não é tudo, porém. E pode ser o mais fácil, especialmente se os recursos sobejarem. Ceder de si, de seu orgulho, de sua vaidade, de sua ambição, de sua teimosia, de seu ciúme, a fim de que o bem geral se promova, isso exige renúncia. Doar amor, compreensão, respeito, calor humano ... eis a caridade integral preconizada por Jesus-Cristo.
 

Ninguém discorreu de forma tão sublime acerca da essência da caridade quanto Paulo, no referido capítulo 13 da primeira carta aos coríntios, que agora transcrevemos em parte (vv. 1 a 7 e 13):

Ainda que eu fale todas as línguas dos homens e a língua dos próprios anjos, se eu não tiver caridade, serei como o bronze que soa ou o címbalo que retine.

Ainda que tenha o dom de profecia, que penetre todos os mistérios, e tenha perfeita ciência de todas as coisas; ainda que tenha toda a fé, até o ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei.

E mesmo que tenha distribuído os meus bens para alimentar os pobres e entregado meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, tudo isso de nada me servirá.

A caridade é paciente; é branda e benfazeja; a caridade não é invejosa; não é temerária, nem precipitada; não se enche de orgulho.

Não é desdenhosa; não cuida de seus interesses; não se agasta, nem se azeda com coisa alguma; não suspeita mal.

Não se rejubila com a injustiça, mas se rejubila com a verdade.

Tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre. [...]

Agora, estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade permanecem; porém a maior delas é a caridade.

Essa passagem é comentada por Kardec no item 7 do capítulo 15 do Evangelho Segundo o Espiritismo. Antes de indicar o contexto em que aparece, vejamos as linhas gerais da abordagem do tema caridade nessa importante obra.

4.    A caridade em O Evangelho Segundo o Espiritismo

Estamos agora diante de uma tarefa difícil. Boa parte dos capítulos do Evangelho Segundo o Espiritismo tratam, direta ou indiretamente, da caridade. Há, por exemplo, diversos capítulos dedicados ao estudo de virtudes envolvidas na caridade, como a humildade (cap. 7), a pureza de coração (cap. 8), a afabilidade e a paciência (cap. 9), a misericórdia (cap. 10), a piedade filial (cap. 14), o desprendimento dos bens terrenos (cap. 16), etc. Num plano mais geral, há os capítulos sobre o amor, “Amar o próximo como a si mesmo” (cap. 11) e “Amai os vossos inimigos” (cap. 12), que contêm diversas reflexões sobre a prática do amor, ou seja, sobre a caridade. Mas são sobretudo os capítulos 13 e 15 os que exploram mais a fundo a dimensão ativa do amor. O primeiro deles, “Não saiba a vossa mão esquerda o que dê a vossa mão direita”, salienta o desinteresse que deve, idealmente, caracterizar todas as ações caritativas. É nesse capítulo que também se chama a atenção para a grande abrangência da noção de caridade, que vai muito além da mera ajuda material. Merecem referência especial nesse capítulo as instruções dos Espíritos, sobre a caridade material e a caridade moral, a beneficência, a piedade, os órfãos, os benefícios pagos com a ingratidão e, por fim, a beneficência exclusiva.

Na impossibilidade de comentarmos aqui todos esses tópicos, preferimos centralizar a nossa análise no outro capítulo sobre a caridade, o capítulo 15, “Fora da caridade não há salvação”, pela relação direta que apresenta com as seções precedentes deste trabalho. Se o Evangelho Segundo o Espiritismo representa um dos pontos altos de toda a obra kardequiana, este certamente está entre seus capítulos de maior relevância. Qualquer tentativa de resumi-lo certamente implicará distorções e perdas. Qualquer acréscimo que se lhe queira fazer corre o risco ser redundante. Dessa forma, não nos abalançaremos aqui nem a uma coisa nem a outra, recomendando vivamente ao leitor que o


 

releia na íntegra, estudando e meditando cada uma de suas frases. Procuraremos tão-somente indicar a extraordinária concatenação dos tópicos, apontando sua inserção no contexto das análises que fizemos aqui.

Esse foi um dos capítulos que menos alterações sofreu da primeira edição, de 1864, intitulada Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, para a terceira edição, definitiva, de 1866. Com a exceção do acréscimo de um pequeno parágrafo elucidativo no final do item 7 (na numeração da terceira edição), os textos foram mantidos na íntegra. Apenas as citações do Novo Testamento, que na primeira edição se encontravam agrupadas no início, foram didaticamente distribuídas ao longo do capítulo, nos locais pertinentes. Mencionamos esse fato porque parece-nos significativo indício da perfeição do texto. Mesmo o exigente Kardec, que tanto procurava aprimorar suas obras ao longo das sucessivas edições, viu muito pouco a ser mudado aqui.

O capítulo abre com duas importantes transcrições dos evangelhos de Mateus e Lucas, ambas acerca da questão da “salvação”, ou da conquista da “vida eterna”, ou ainda, na interpretação espírita desse conceito, da “felicidade futura”. Certamente isso liga-se ao conhecimento que Kardec tinha de que essa questão estava histórica e conceitualmente ligada à da caridade, conforme apontamos no início. Em ambos os trechos citados Jesus situa claramente a caridade como a via exclusiva da salvação. O primeiro descreve a alegoria do juízo final (Mt. 25: 31-46). Na síntese de Kardec, “ao lado da parte acessória ou figurada do quadro, há uma idéia dominante: a da felicidade reservada ao justo e a da infelicidade que espera o mau”. (Note-se que na passagem o termo ‘justos’ é explicitamente usado para designar os que foram caridosos com o próximo necessitado.)

O segundo trecho é a famosa parábola do bom samaritano (Lc. 10: 25-37). Novamente, é a caridade pura e independente de qualquer fé (os samaritanos eram considerados heréticos pelos judeus) que é dada como a “condição única” para a salvação, visto que ela “implicitamente abrange todas as outras: a humildade, a brandura, a benevolência, a indulgência, a justiça, etc., e porque é a negação absoluta do orgulho e do egoísmo”.

Vem depois a seção sobre “O mandamento maior”. Conforme já observamos, esse mandamento é comum ao Velho e ao Novo Testamentos, podendo também ser identificado, em outras roupagens, nas demais religiões da humanidade. Quando perguntado a respeito, Jesus simplesmente lembrou o que já estava na Lei, o amor a Deus e o amor ao próximo. O que acrescenta é a afirmação de que o segundo mandamento “é semelhante ao primeiro” (Mt. 22: 35-40). Kardec comenta essa importante frase, asseverando, em síntese, que “não se pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem amar o próximo sem amar a Deus”. Há, pois, essencialmente um só mandamento, “o mandamento maior”. Recordamo-nos aqui dos versículos 20 e 21 do capítulo 4 da primeira epístola de João: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e aborrece a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E dele [Deus] temos este mandamento, que quem ama a Deus ame também a seu irmão.”

Mas o que faz essa referência à lei do amor num capítulo sobre a caridade? A resposta está no vínculo entre amor e caridade que indicamos na seção 3, vínculo destacado por Kardec no comentário da passagem evangélica sobre o mandamento maior. É no final desse comentário que aparece o primeiro enunciado do famoso princípio: “FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO”.

A propósito da caridade implicitamente contida no mandamento maior, vale abrir um parêntese para lembrar que, numa outra ocasião em que Jesus foi questionado sobre o assunto, apresentou o mandamento numa versão diferente: “Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam”, acrescentando: “pois é nisso que consistem a lei e os profetas” (Mt. 7:12). Nessa versão, conhecida como a “regra áurea”, está explícito o caráter ativo do mandamento, ou seja, a caridade. Kardec cita e comenta essa passagem no capítulo 11 do Evangelho segundo o Espiritismo, “Amar o próximo como a si mesmo”.

Ciente da velha polêmica teológica, em que se pretendeu usar palavras atribuídas a Paulo para justificar a tese da salvação pela fé, Kardec transcreveu, no item 6 desse capítulo, o trecho da primeira carta do apóstolo aos coríntios que reproduzimos no final da seção precedente. Dá ao tópico o título “Necessidade da caridade, segundo S. Paulo”. Seria uma provocação? Certamente que não, pois provocações e polêmicas eram incompatíveis com seu equilíbrio, sua serenidade e seu espírito cristão. Foi, sim, a exposição firme e inequívoca de uma das conseqüências da análise espírita da moral e da religião, talvez a conseqüência de maior importância para a Humanidade.

Apesar dessa concordância da análise espírita com parte da interpretação católica da questão da caridade – a saber, a importância das obras para a salvação –, Kardec exerce a seguir a sua imparcialidade, criticando a máxima católica de que “Fora da Igreja não há salvação”. Após a refutação enérgica desse princípio, estende a crítica à máxima associada, “Fora da verdade não há salvação”. Ambos os princípios são mostrados não apenas carecer de fundamentação evangélica e racional, mas também serem nocivos ao bem da Humanidade, já que induzem ao sectarismo, à intolerância e ao obscurantismo.

O capítulo é encerrado com uma eloqüente comunicação mediúnica do próprio Paulo, em que o princípio-síntese “Fora da caridade não há salvação” e o papel do Espiritismo na sua implantação são comentados com palavras de grande profundidade, que não nos atreveríamos a resumir aqui. Tome, leitor amigo, seu exemplar de O Evangelho segundo o Espiritismo agora mesmo, e não adie o privilégio de poder fruir a beleza e a transcendência de um texto como esse.

Obras citadas

BÍBLIA. Trad. João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, s. d.

BÍBLIA. Trad. da Vulgata e anotado por Matos Soares. 5a ed., São Paulo, Pia Sociedade de São Paulo, s.d. (reimprimatur 1951).

CHAVE BÍBLICA. Brasília, Sociedade Bíblica do Brasil, 1970.

CHIBENI, S. S. As paixões: Uma breve análise filosófica e espírita. Reformador, abril de 1998, p.

112-15 e 125-27.

DESCARTES, R. Les Passions de l’Âme. In: Adam, C. e Tannery, P. (eds.) Oeuvres de Descartes. Tomo XI, p. 291-497. Paris, Vrin, 1967. (As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. In: Descartes - Obra Escolhida, p. 295-404. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1973.)


EMMANUEL. O Consolador. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 8a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1940.

–––. Fonte Viva. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 9a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1956.

–––. Paulo e Estêvão. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 16a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1945.

FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s. d.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
 

–––. Imitation de l’Évangile selon le Spiritisme. Reprodução fotomecânica do original francês. Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1979.

–––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. de Guillon Ribeiro. 111a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.

LA BIBLE DE JÉRUSALEM. Paris, CERF, 1998.

NOVO TESTAMENTO. Trad. segundo o original grego. Sociedade Bíblica Americana, Nova York, s. d.

NOVO TESTAMENTO, SALMOS E PROVÉRBIOS. Trad. João Ferreira de Almeida. Os Gideões Internacionais, edições de 1977 e 1979.


 

 

Fonte: Jornal Mundo Espírita (Março / Junho 2000).

 

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