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Paulo e Tiago: A Ética da Alteridade

Antônio Nascimento [1]
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São Pedro e São Paulo.
Por José de Ribera, circa 1616.

“Suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como o Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. E, sobretudo isto, revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição. ”
 

(Colossenses 3,13-14)
 

 

Uma séria crise abateu-se sobre o movimento cristão dos primeiros dias. Tiago e vários seguidores eram partidários da circuncisão apoiados na lei mosaica, enquanto Paulo e outros defendiam a total independência do Evangelho.

 
A circuncisão era um rito exterior, um “sinal de pacto”, a ser posto em todos os descendentes masculinos de Abraão, a fim de ficar como memorial da Aliança que Yahweh, assim, estabelecia com seu povo. Significava um compromisso tanto com o povo de Is¬rael, como com o próprio Deus de Israel. Rejeitar a circuncisão resultava em ser “expulso” do seu povo (Gn 17,10-14). Os estrangeiros que desejavam entrar na comunhão com o povo de Israel, e com o seu Deus, bem como celebrar a Páscoa e participar de outras bênçãos, tinham de submeter-se a este rito, a circuncisão, qualquer que fosse a sua idade (Gn 34,14-17, 22; Ex 12,48). A circuncisão foi tornada um requisito obrigatório da lei mosaica. “E, no oitavo dia, se circuncidará ao menino a carne do seu prepúcio” (Lv 12:13). Isto era tão importante que, se o oitavo dia caísse no altamente respeitado Sábado, ainda assim se devia realizar a circuncisão (Jo 7, 22-23). João Batista, Jesus e Paulo foram circuncidados ao “oitavo dia” (Lc 1,59; 2,21; Fl 3,5). 


Paulo compreendeu a questão com rara profundidade e manteve viva preocupação, observando as polêmicas que surgiam em torno deste assunto, bem como dos alimentos puros e impuros, e a determinação dos judeus cristãos de não sentarem-se à mesa de refeições comuns com os cristãos gregos, nem frequentar-lhe os lares. Como ele temia, o problema ameaçava de ruptura a comunidade cristã e colocava em perigo o trabalho que vinha realizando entre os gentios [2]


Os irmãos de Jerusalém, que nunca tinham saído de sua terra, e não compreendiam a situação dos gentios, não consideravam os conversos do gentilismo como verdadeiros cristãos, afirmando que não poderiam ter sido aceitos sem antes admitir a lei mosaica. 

Esta questão não preocupava os judeus convertidos, tampouco os prosélitos [3] inteiros convertidos. Entretanto, na comunidade de Antioquia, que era constituída, em sua grande maioria, de cristãos com origem do paganismo [4], cujos laços com o judaísmo eram muito fracos, surgiam sérias dificuldades. Para estes, sujeitarem-se ao rito da circuncisão ou à ritualística da lei mosaica, constituía-se em fardo inaceitável, reduzindo a experiência da liberdade cristã à estreiteza da sinagoga e negando a universalidade da mensagem de salvação de Jesus. 


Havia por trás de tudo isto um grave e duplo problema, um de cunho religioso, outro de caráter social. Se continuasse assim teríamos cristãos de primeira classe ou cristãos inteiros e meio-cristãos, criando no cristianismo nascente dois agrupamentos: um interior e outro exterior. A visão judaizante, concentrada em Jerusalém e liderada por Tiago, afirmava que Jesus nascera sob a Lei de Moisés, e que dissera não ter vindo anulá-la, mas dar-lhe cumprimento, assim como afirmara que ela se cumpriria até o último til e o último iota* (Mt 5, 17-18). 


Esqueciam-se de que Jesus havia prometido aperfeiçoar a Lei e que em muitas passagens expres¬sou-se assim: “Os antigos diziam... mas eu vos digo” (Mt 5, 21-22; Jo 8). 


Emmanuel resgata e aclara estes momentos na sua magnífica obra Paulo e Estêvão, apresentando-nos no capítulo V - Lutas pelo Evangelho – as discussões mais críticas e decisivas, as quais nos trazem excelen¬te material de reflexão e aprendizado aos que busca¬mos estar preparados para os episódios de crise, que ocorrem em nossas vidas e mesmo no seio das insti¬tuições espíritas, entre seus trabalhadores. 


“As reuniões Espíritas oferecem grandíssimas vantagens, por permitirem que os que nela tomam parte se esclareçam, mediante a permuta de ideias, pelas questões e observações que se façam, das quais todos aproveitam. Mas, para que produzam todos os frutos desejáveis, requerem condições especiais, que vamos examinar, porquanto erraria quem as comparasse às reuniões ordinárias.”

O Livro dos Médiuns – cap. XXIX – item 324. 


A proposta destes apontamentos simples é identificarmos nos embates entre os pensamentos de Tiago e Paulo, com a mediação de Simão Pedro, a ética da alteridade. 

Ética, segundo o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, é o conjunto de normas e princípios que norteiam a boa conduta humana; estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana, do ponto de vista do bem e do mal.

 
Alteridade é a qualidade ou natureza do que é outro, diferente. Podemos entender que alteridade é colocar-se no lugar do outro numa relação interpessoal, com consideração, valorização, identificação, e dialogar com o outro. O exercício da alteridade se aplica aos relacionamentos tanto entre indivíduos como entre grupos culturais religiosos, científicos, étnicos, etc. 


Portanto, o estabelecimento de uma relação de paz com os diferentes, a capacidade de conviver bem com a diferença da qual o outro é portador, isto é a ética da alteridade. 


A prática da alteridade conduz da diferença à soma nas relações interpessoais entre os seres humanos. 


Alteridade é uma palavra que vem ganhando uso acentuado nos meios sociais do século XXI, entretanto a palavra em si não serve para nada se não for acompanha e praticada em si mesma. 


“Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?” 

Mt 5, 46-47 – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XII – item 1 


O desafio de conviver com os que pensam diferente de nós, com os contrários, e aprender a respeitá-los e amá-los na sua diversidade constitui, ainda e significativamente, um desafio ético nos centros espíritas e aos seus dirigentes e colaboradores. 


Para isto não precisamos desistir de nossa visão e de defendê-la, como vemos em Paulo e Estêvão, na página 471, durante a discussão de Barnabé e Paulo: 


“O ambiente carregara-se de nervosismo. Os gentios de Antioquia fitavam o orador, enternecidos e gratos. Os simpatizantes do farisaísmo, ao contrário, não escondiam seu rancor, em face daquela coragem quase audaciosa. Nesse instante, de olhos inflamados por sentimentos indefiníveis, Barnabé tomou a palavra, enquanto o orador fazia uma pausa, e considerou: 


— Paulo, sou dos que lamentam tua atitude neste passo. Com que direito poderás atacar a vida pura do continuador de Cristo Jesus? 


Isso, inquiria-o ele em tom altamente comovedor, com a voz embargada de lágrimas. Paulo e Pedro eram os seus melhores e mais caros amigos. 

Longe de se impressionar com a pergunta, o orador respondeu com a mesma franqueza: 


— Temos, sim, um direito: — o de viver com a verdade, o de abominar a hipocrisia, e, o que é mais sagrado — o de salvar o nome de Simão das arremetidas farisaicas, cujas sinuosidades conheço, por constituírem o báratro escuro de onde pude sair para as claridades do Evangelho da redenção. 


A palestra do ex-rabino continuou rude e franca. De quando em quando, Barnabé surgia com um aparte, tornando a contenda mais remida. 


Entretanto, em todo o curso da discussão, a figura de Pedro era a mais impressionante pela augusta serenidade do semblante tranquilo.” 


As diferenças entre os posicionamentos não devem ser, necessariamente, rotuladas de defeitos ou servirem de referências para causar a indiferença ou a separação, somente porque não compreendemos as escolhas e a trajetória do outro, o que certamente conseguiremos equacionar melhor ao adquirirmos a ética da alteridade.

 
Pela relação alteritária é possível estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário. 


Para que o processo de aprendizado da alteridade aconteça, contudo, devemos atentar para alguns aspectos das diferenças: 

a) Identificação – para isso devemos eliminar quaisquer preconceitos e atermo-nos na real identificação dos posicionamentos do outro, sabendo que dependem da sua estrutura psíquica, formada ao longos das múltiplas experiências desta e de outras vidas; 


b) Entendimento – procurarmos entender as razões conscientes e, até mesmo, as inconscientes (medos, anseios e motivações), para que não façamos avaliações superficiais ou definitivas e fechadas, que nos impeçam de ampliar a compreensão da postura do outro e da diferença identificada; 


c) Aprendizado – esta fase permite-nos a acessibilidade mútua, a receptividade aos sentimentos do outro, facultando-nos uma relação de aprendizado e a aproximação pelos aspectos que nos unem, permitindo que o esclarecimento e o amadurecimento pelas experiências vividas ao longo do tempo tragam-nos a sabedoria. 


Podemos aprender muito sobre a identificação das diferenças neste relato de Emmanuel sobre os pensamentos de Simão Pedro: 


“Naqueles rápidos instantes, o Apóstolo galileu considerou a sublimidade da sua tarefa no campo de batalha espiritual, pelas vitórias do Evangelho. De um lado estava Tiago, cumprindo elevada missão junto do judaísmo; de suas atitudes conservadoras surgiam incidentes felizes para a manutenção da igreja de Jerusalém, erguida como um ponto inicial para a cristianização do mundo; de outro lado estava a figura poderosa de Paulo, o amigo desassombrado dos gentios, na execução de uma tarefa sublime; de seus atos heroicos, derivava toda uma torrente de iluminação para os povos idólatras. Qual o maior a seus olhos de companheiro que convivera com o Mestre e dele recebera as mais altas lições? Naquela hora, o ex-pescador rogou a Jesus lhe concedesse a inspiração necessária para a fiel observância dos seus deveres.” 


Pedro também ajuda-nos na experiência do entendimento do outro: 


“Era preciso ser justo, sem parcialidade ou falsa inclinação, O Mestre amara a todos, indistintamente. Repartira os bens eternos com todas as criaturas. Ao seu olhar compassivo e magnânimo, gentios e judeus eram irmãos. Experimentava, agora, singular acuidade para examinar conscienciosamente as circunstâncias. Devia amar a Tiago pelo seu cuidado generoso com os israelitas, bem como a Paulo de Tarso pela sua dedicação extraordinária a todos quantos não conheciam a ideia do Deus justo. 

O ex-pescador de Cafarnaum notou que a maioria da assembleia lhe dirigia curiosos olhares. Os companheiros de Jerusalém deixavam perceber cólera íntima, na extrema palidez do rosto. Todos pareciam convocá-lo à discussão. Barnabé tinha os olhos vermelhos de chorar e Paulo parecia cada vez mais franco, verberando a hipocrisia com a sua lógica fulminante. O Apóstolo preferiria o silêncio, de modo a não perturbar a fé ardente de quantos se arrebanhavam na igreja sob as luzes do Evangelho; mediu a extensão da sua responsabilidade naquele minuto inesquecível. Encolerizar-se seria negar os valores do Cristo e perder suas obras; inclinar-se para Tiago seria a parcialidade; dar absoluta razão aos argumentos de Paulo, não seria justo. Procurou arregimentar na mente os ensinamentos do Mestre e lembrou a inolvidável sentença: — o que desejasse ser o maior, fosse o servo de todos. Esse preceito proporcionou-lhe imenso consolo e grande força espiritual.” 


O aprendizado da alteridade demonstrado por Pedro, ao longo dos anos, foi determinante para o equacionamento da questão fundamental: 


“Quando o ex-pescador reconheceu que as divergências prosseguiriam indefinidamente, levantou-se e pediu a palavra, fazendo a generosa e sábia exortação de que os Atos dos Apóstolos (capítulo 15º, versículos 7 e 11) fornecem notícia: 


— Irmãos — começou Pedro, enérgico e sereno —, bem sabeis que, de há muito, Deus nos elegeu para que os gentios ouvissem as verdades do Evangelho e cressem no seu Reino. 


O Pai, que conhece os corações, deu aos circuncisos e aos incircuncisos a palavra do Espírito Santo. No dia glorioso do Pentecostes as vozes falaram na praça pública de Jerusalém, para os filhos de Israel e dos pagãos. O Todo-Poderoso determinou que as verdades fossem anunciadas indistintamente. Jesus afirmou que os cooperadores do Reino chegariam do Oriente e do Ocidente. Não compreendo tantas controvérsias, quando a situação é tão clara aos nossos olhos. 


O Mestre exemplificou a necessidade de harmonização constante: palestrava com os doutores do Templo; frequentava a casa dos publicanos; tinha expressão de bom ânimo para todos os que se baldavam de esperança; aceitou o derradeiro suplício entre os ladrões. Por que motivo devemos guardar uma pretensão de isolamento daqueles que experimentam a necessidade maior? Outro argumento que não deveremos esquecer é o da chegada do Evangelho ao mundo, quando já possuíamos a Lei. Se o Mestre no-lo trouxe, amorosamente, com os mais pesados sacrifícios, seria justo enclausurarmo-nos nas tradições convencionais, esquecendo o campo de trabalho? Não mandou o Cristo que pregássemos a Boa Nova a todas as nações? Claro que não poderemos desprezar o patrimônio dos israelitas. Temos de amar nos filhos da Lei, que somos nós, a expressão de profundos sofrimentos e de elevadas experiências que nos chegam ao coração através de quantos precederam o Cristo, na tarefa milenária de preservar a fé no Deus único; mas esse reconhecimento deve inclinar nossa alma para o esforço na redenção de todas as criaturas. Abandonar o gentio à própria sorte seria criar duro cativeiro, ao invés de praticar aquele amor que apaga todos os pecados. É pelo fato de muito compreendermos os judeus e de muito estimarmos os preceitos divinos, que precisamos estabelecer a melhor fraternidade com o gentio, convertendo-o em elemento de frutificação divina. Cremos que Deus nos purifica o coração pela fé e não pelas ordenanças do mundo. Se hoje rendemos graças pelo triunfo glorioso do Evangelho, que instituiu a nossa liberdade, como impor aos novos discípulos um jugo que, intimamente, não podemos suportar? Suponho, então, que a circuncisão não deva constituir ato obrigatório para quantos se convertam ao amor de Jesus-Cristo, e creio que só nos salvaremos pelo favor divino do Mestre, estendido generosamente a nós e a eles também.” 


Podemos aprender muito com estes embates entre Paulo e Tiago nas “Lutas pelo Evangelho” e, principalmente, com a segura e experiente liderança de Simão Pedro. 


“A exortação do ex-pescador dava margem a numerosas interpretações; se falava no respeito amoroso aos judeus, referia-se também a um jugo que não podia suportar. Ninguém, todavia, ousou negar-lhe a prudência e bom-senso indubitáveis. (...) Havia em tudo, agora, uma nota de satisfação geral. As observações de Pedro calaram fundo em todos os companheiros.” 


Não esqueçamo-nos de que não temos mérito nenhum em tratar bem a quem nos trata bem também, mas sim em tratar bem a quem não nos trata bem. Pela relação de alteridade é possível tratarmos bem a todos, independentemente de como nos tratam. O crescimento é eminente quando lidamos com aqueles que pensam, sentem e agem diferentemente de nós, numa relação alteritária. 


Somente atingiremos a alteridade se nos dispusermos a, diante do diferente, parar, olhar, ouvir com atenção, ponderar com calma e, somente após isto, agir com equilíbrio e determinação, sempre apoiados no bom senso e na fé raciocinada à luz do Consolador Prometido. 

[1] Trabalhador Espírita, 8ª Região Federativa.


[2] Gentios: povos ou nações não israelitas. 

[3] Prosélito: converso, isto é, alguém que abraçou o judaísmo, sendo circuncidado, se homem. 

 

[4] Paganismo: é um termo geral, normalmente usado para se referir a tradições religiosas politeístas. 

* Iota: é a nona letra do alfabeto grego. 

 


Referências: 


XAVIER, Francisco Cândido. Paulo e Estêvão. Pelo Espírito Emmanuel. 36.ed. Rio de Janeiro: FEB, 2001. cap. V. 


KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 112. ed. Rio [de Janeiro]:FEB, 1996. cap. III – item 2. 


Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns. ___ed. 112. ed. Rio [de Janeiro]:FEB, ___. cap. XXIX. item 324. 
 

 

Fonte: Revista A Reencarnação (1º Semestre de 2012, Ano LXXIX Nº 443)

 

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